A luta por fronteiras abandona as armas e vai ao dicionário. Para criar um idioma que possam chamar de seu, nações criam, matam em ressuscitam seu jeito de falar
Caem as palavras que expressam ideias perigosas. Criam-se outras que anulam críticas ao Estado. E assim, no romance 1984 de George Orwell, a fala foi reduzida, modificada e condensada até virar a novilíngua — o idioma extremamente simplificado com o qual uma ditadura do futuro controlava o pensamento das pessoas. Esse tipo de engenharia linguística não acontece apenas na ficção. Alguns governos, etnias e grupos de intelectuais também tentam reformar seus idiomas. Para quê? Não é que tenham planos maquiavélicos. Eles são Estados novos que tentar forjar uma identidade nacional. Se dá certo? É o que veremos.
Babel balcânica
Junto com a queda da Iugoslávia, o idioma servo-croata se dividiu em “4 novas línguas”, mas que na realidade continuam sendo a mesma.
A professora croata Sandora Dembitza acaba de ser premiada. Seu mérito: criou a palavra zatipak, que significa “erro de digitação”. Não é que a sua língua sofresse da inexistência de um termo para isso. Mas o anterior, tipfeler, não era croata de pura cepa. Era derivado do alemão Tippfehler. E é para “limpar” a língua desse tipo de estrangeirismo que a revista literária Jazik dá todo ano um prêmio à “melhor nova palavra croata”. Mas há um detalhe: não existe o idioma croata — do mesmo jeito que não existem o sérvio, o bósnio ou o montenegrino.
“Do ponto de vista linguístico, o idioma falado nesses países é um só — aquele que na ex-Iugoslávia a gente chamava de servo-croata”, diz Dragana Radojevic, professora de filologia na Universidade de Belgrado, na Sérvia. “Hoje, ela tem vários nomes por motivos políticos. Mas só os mais nacionalistas os reconhecem”. Claro que cada linguajar desses possui variações, sobretudo no vocabulário e na pronúncia — tal como acontece com o português do Brasil. Mas, com o desmantelamento da Iugoslávia nos anos 90, os países que surgiram dela têm aumentado pequenas diferenças para valorizar sua identidade. Não é pouco numa região dividida entre maioria católica na Croácia, muçulmana na Bósnia e ortodoxa na Sérvia e em Montenegro.
Na Croácia, o governo publica manuais para ensinar o público a falar o croata “correto”. É o caso da palavra srediste (“centro”), que deve ser usada no lugar de centar — encontrada em outras línguas eslavas. A Academia de Línguas de Montenegro foi mais prática: adicionou duas letras (s e z) ao seu alfabeto para suas palavras ficarem diferentes, sem precisar mudar o vocabulário. A Bósnia aproveitou a proximidade cultural com os turcos, que durante o domínio otomano haviam exportado palavras suas para o servo-croata, e passaram a dar preferência a elas.
Já na Sérvia não há novas palavras. Mas todos os documentos oficiais devem ser escritos em cirílico, embora no país se use também o alfabeto latino. “As pessoas comuns riem dessas medidas.
Na Croácia, porém, são obrigadas a usar as novas palavras em artigos científicos e no âmbito burocrático. Caso contrário, não serão presas, mas podem ser tachadas de analfabetas ou incultas”, diz Dragana. “Mas se você escutar os croatas conversando entre si, vai ver que eles não falam da maneira que são obrigados a escrever. Como em todo lugar, os jovens gostam de games, música e internet. Portanto, gostam do inglês, sem pensar que, ao usá-lo, vão prejudicar o idioma ou perder sua identidade nacional”.
Servo-Croata
Cada país da ex-Iugoslávia tenta de uma forma criar seu próprio idioma.
Cróacia
Palavras estrangeiras são trocadas por termos eslavos já abandonados — ou por neologismos.
Pegou
Entrou – putovnica (“passaporte”)
Saiu – pasoš (de raiz latina)
Convive paralelamente
Permaneceu – računalo (“computador”)
Permaneceu – kompjutor (do inglês)
Não colou
Tenta entrar – kopnica (“aids”)
Permaneceu – aids
Montenegro
O que era escrito com sj e zj é escrito com ś e ź.
Saiu – sjutra (“amanhã”)
Entrou – sutra
Saiu – kozji sir (“queijo de cabra”)
Entrou – koźi sir
Sérvia
Documentos oficiais passam a usar o alfabeto cirílico
Saiu – Srbija (“Sérvia”)
Entrou – CpϬиja
Das Escrituras para as ruas
Um movimento de linguistas trouxe de volta à fala uma língua bíblica cristalizada em rezas e poemas. Hoje, é o idioma oficial de Israel.
Quando o filólogo lituano Eliezer Ben-Yehuda mudou-se da Europa para a Palestina, em 1881, ele e sua esposa decidiram só falar em hebraico. Só que a língua tinha deixado de ser usada oralmente mais de dois milênios atrás. Ainda que sobrevivesse em rezas e poemas, era um idioma apenas escrito. E com poucas palavras do cotidiano. No ano seguinte, Ben-Yehuda teve um filho — Itamar. Nascia assim o primeiro falante nativo de hebraico moderno. Conforme aprendia a falar, Itamar ajudou o pai a criar novas palavras. Aos 5 anos, Itamar viu um pião girando e o chamou de sevivon, do verbo savov (“girar”). Foi uma das 8 mil palavras hebraicas que ele e o pai incluíram num dicionário, adotado por escolas, revistas e grupos culturais no início do século XX.
Hoje, o hebraico é o único caso de renascimento em massa de uma língua. Para abraçar palavras do dia a dia, a língua bíblica ganhou novos termos a partir de raízes antigas, reciclou expressões dos tempos de Moisés e incluiu termos do árabe e do aramaico. Como língua oficial de Israel, assumiu empréstimos ingleses, russos e alemães. E em 1953, esse renascimento virou política oficial, com a criação da Academia de Língua Hebraica. Ela tem fama de ser a “polícia do idioma”, e suas invenções nem sempre são aceitas. O organismo criou, por exemplo, várias opções para “alta tecnologia”, mas o que se usa mesmo é haitek – do inglês high tech. Mas em outros casos os neologismos se mostraram bem versáteis. Em Israel não se diz shopping, por exemplo. A solução foi kanion – de kana (“compra”) e henion (“estacionamento”). E em vez de celular, os israelenses dizem naiad (“portátil”, que vem de iad, “mão”). E a língua antes silenciada vai se renovando a todo vapor.
Hebraico
Sem palavras cotidianas, só restou inventar ou importar palavras. E o hebraico fez os dois.
Invenções
Matslemá (“câmera fotográfica”, do hebraico tselem, “imagem”)
Kadurreguel (“futebol”, do hebraico kadur, “bola” e reguel, “pé”)
Importações
Boss (“chefe”, do inglês)
Gummi (“borracha”, do alemão)
Balagan (“bagunça”, do russo)
Masala language
Ao se libertar da Inglaterra, a Índia tentou fazer do hindi a língua nacional. Mas para o Sul do país, até o idioma do ex-colonizador era melhor do que o do Norte.
A maior colônia britânica na primeira metade do século XX era uma região do sul da Ásia com o formato da cabeça de um elefante habitada por inúmeros povos sem uma língua em comum. Em 1947, ela se tornou independente. As duas orelhas viraram o Paquistão (até uma guerra transformar a orelha do leste em Bangladesh). A testa e a tromba viraram a Índia. E disso sobrou um problema: seu idioma oficial. Por séculos, o hindi — um dialeto indo-ariano falado em Délhi — servia de língua franca no populoso norte. Mas não na tromba do elefante, cujas línguas dravidianas não têm nenhuma relação com o hindi. Para o sul da Índia, portanto, impor o hindi seria uma forma de dominação. Perto disso, o inglês — que já era usado no comércio, na política e na vida acadêmica — parecia mais neutro. A solução foi dar um jeitinho: tanto o hindi quanto o inglês seriam oficiais. A ideia era que o inglês sumisse gradualmente. Mas o que aconteceu foi um acasalamento entre os dois.
Na população geral, o governo conseguiu emplacar o híndi por meio do sistema educacional, paralelo às línguas regionais. O segundo passo foi preencher as lacunas do vocabulário hindi com neologismos vindos do sânscrito. Recycling (“reciclagem”), por exemplo, virou punarchakran — que usa o mesmo chakra (“ciclo”) das aulas de ioga. “Mas a urgência e a intensidade tornaram o esforço indiano bastante artificial”, diz Richard Snell, diretor do programa de hindi e urdu da Universidade do Texas. Resultado: esses neologismos viraram piada na Índia urbana. Entre esse grupo — que vê o inglês como ponte para o mercado de trabalho em empresas que prestam serviços ao exterior — o hindi se misturou ao inglês com toda a força.
O cinema de Bollywood tem títulos como Love Khichdi (algo como “Caldeirão de Amor”). Em programas de auditório, a cada frase em hindi surge um let me tell you (“deixa-me te dizer”). E jovens de classe média se esbaldam em híbridos poéticos como chaddy buddy — amigo de infância, ou literalmente “amigo de cueca”. Isso não quer dizer que o inglês superará o hindi. Fora da classe média urbana, o hindi virou, de fato, a língua franca. O jornal em inglês mais vendido está atrás de 5 jornais em hindi e 2 em línguas regionais. E os televisores, presentes hoje em 61% das casas, transmitem programas nacionais em hindi. E se um tâmil e uma bengali se casarem, a saída vai ser o hindi — goste ou não.
Hindi
Com a independência do país, buscaram-se tirar termos ingleses e inventar novos, com raízes sânscritas.
Pegou
Entrou – aandolan (“oscilação”)
Saiu – movement (“movimento” social ou religioso)
Entrou – raashtrapati (“pai da nação”)
Saiu – president
Não colou
Tenta entrar – aakaashvaani (“voz do céu”, “oráculo”)
Permaneceu – radio
Tenta entrar – duurdarshan (“visão distante”)
Permaneceu – TV
Guardiões da língua
No século XX, médicos iranianos tentaram extirpar os termos árabes do idioma persa. Hoje, um órgão do governo busca limpá-lo de palavras inglesas.
Quem visita o Irã encontra uma civilização orgulhosa e autocentrada. Mas também se surpreende com a quantidade de palavras de origem estrangeira no persa. É que o idioma falado no país sofreu diversas ondas de estrangeirismos ao longo de suas invasões. A conquista islâmica no século VII trouxe palavras árabes. Gêngis Khan no século XIII implantou termos mongóis. O Império Otomano no século XV introduziu vocábulos turcos. E a modernização no início do século XX levou ao contato com o francês — língua franca dos intelectuais de então. Daí vieram palavras como archive (“arquivo”) e merci (“obrigado”), usadas até hoje.
Em 1934, porém, um grupo de médicos iranianos decidiu dar um basta na importação de palavras. Eles criaram a Academia Persa, a fim de encontrar equivalentes para os termos árabes, que dominavam a literatura médica no país. “Esses acadêmicos foram extremamente antiárabes no planejamento linguístico. E a atitude teve o apoio do xá Reza Pahlevi, cuja ideologia era o renascimento do nacionalismo iraniano”, diz a linguista Sara Siyavoshi, de Teerã. O sucesso foi relativo. Os iranianos em geral preferem empregar termos em persa em vez dos árabes. Mas o número de palavras árabes é tão grande que é impossível falar o idioma sem elas.
Se para o xá o problema era o árabe, agora para os aiatolás, que chegaram ao poder com a Revolução Islâmica, (1979) o vilão é a invasão do inglês. E para isso o Irã tem um novo cão de guarda: a Academia Persa de Língua e Literatura. Ela cria novos termos combinando palavras, prefixos e sufixos persas. É o caso de forudgah (“aeroporto”), feita com o substantivo foroud (“pouso”) e o sufixo gah, que indica lugar. Dá certo? Nem sempre. “A maioria dos equivalentes em persa criados para substituir os do inglês não são bem recebidos pelas pessoas. Por isso, são usados apenas em comunicações oficiais”, diz Sara. A Academia, por exemplo, criou payamak (“mensagenzinha”). Mas o termo só é usado no rádio e na TV. No mundo real, todo mundo diz “SMS”. “No entanto, algumas palavras novas têm tido sucesso entre as pessoas”, diz Sara. “Muitos nem sabem que estão usando palavras “artificiais” criadas pela Academia”. É o caso de daneshgah (“universidade”), feita com a união de danesh (“conhecimento”) e gah (que indica lugar).
Persa
No Irã, a Academia Persa de Língua e Literatura substitui palavras estrangeiras por neologismos persas.
Pegou
Entrou – Damasandj (“medida de temperatura”)
Saiu – Thermomètre (do francês)
Não colou
Tenta entrar – Balgard (“asa que gira”)
Permaneceu – Helicopter (do inglês)
Fontes: Linguistic Borrowing and Purism in the Croatian Language, de Marija Turk e Maja Opašic; Language and Identity in the Balkans, de Robert D. Greenberg; e Dragana Radojevic, Nancy Rozenchan, Balashon (Hebrew Language Detective, http://www.balashon.com) e Academia de Língua Hebraica, Rupert Snell e Sara Siyavoshi