- O que é o mirandês?
- Onde se fala mirandês?
- Quantas pessoas falam mirandês?
- Qual a origem da língua mirandesa?
- Como se deu o processo de menorização da língua mirandesa?
- Porque se manteve o mirandês até aos nossos dias?
- O mirandês é uma língua ou um dialeto?
- Quais são as principais características da língua mirandesa?
- A língua mirandesa tem as mesmas características em todo o lado?
- Como se dá a transição do mirandês de língua oral a língua escrita?
- Qual o atual estatuto jurídico da língua mirandesa?
- Qual a situação do ensino da língua mirandesa?
- Existe uma literatura em língua mirandesa?
- Qual a importância da língua mirandesa para Portugal?
O que é o mirandês?
O mirandês, ou língua mirandesa, é o nome de uma língua falada no Nordeste de Portugal, já desde antes da fundação da nação portuguesa. Quanto à estrutura é uma língua românica, que teve a sua principal origem a partir do latim. Historicamente pertence à família de línguas astur-leonesas, onde também se incluem o asturiano e o leonês.
Até 1884 foi uma língua apenas oral. Desde então, tem sido também escrita, dispondo de uma Convenção Ortográfica desde 1999. Nomeadamente a partir do século XVI e apesar de ser uma língua falada em Portugal desde o começo da sua existência, o mirandês é uma língua menorizada quer em termos culturais e sociológicos, quer em termos políticos, levando a que Portugal fosse apresentado, até há muito pouco tempo, como o único país monolíngue da Europa, afinal falsa exceção à regra do bilinguismo ou multilinguismo dos diversos países. Em 1999, com a lei n.º 7/99, de 29 de janeiro, o mirandês foi oficialmente reconhecido como língua regional de Portugal.
Onde se fala mirandês?
A língua mirandesa é falada em todas as aldeias do concelho de Miranda do Douro, com exceção de duas (Atenor e Teixeira), e em três aldeias do concelho de Vimioso (Vilar Seco, Angueira e Caçarelhos), no distrito de Bragança. O mirandês foi, apressadamente, dado como extinto em aldeias como Caçarelhos, porém, apesar de muitíssimo debilitado, continua aí a ser falado por pessoas de idade. A área ocupada pela região onde se fala o mirandês tem por volta de 500 km de superfície e situa-se na fronteira com a província espanhola de Zamora (Aliste e Sayago). O mirandês é também falado por muitos mirandeses que imigraram para as principais cidades do país ou que emigraram para o estrangeiro.
Na cidade de Miranda do Douro, onde segundo alguns autores deixou de se falar mirandês no início do século XVII, a língua tem vindo a regressar com as pessoas das aldeias que, nos últimos anos, aí têm vindo a fixar residência. Também desde há alguns anos as crianças da cidade usufruem do ensino da língua mirandesa nas escolas públicas. Apesar disso, a fala mirandesa não é de uso normal na cidade, mas sim o português e, dada a quantidade de turistas espanhóis que a visitam para fazer compras ou simplesmente comer, o castelhano. Daí que, para se ouvir falar mirandês, a cidade de Miranda do Douro não seja o local adequado, razão pela qual são apressadas e sem fundamento as conclusões que apontam para a extinção do mirandês pelo fato de não se falar na cidade que é capital administrativa da terra de Miranda.
O espaço onde se falou mirandês ou outras variedades do astur-leonês já foi bastante mais vasto, incluindo, em traços gerais e grosseiros, toda a zona do distrito de Bragança que se situa entre a margem esquerda do rio Sabor e a fronteira com Espanha. Terá sido assim na Alta Idade Média, regredindo progressivamente em direção à fronteira. Além do mirandês, outras falas astur-leonesas se mantiveram até recentemente na zona fronteiriça do concelho de Bragança, chamada Lombada, em particular nas aldeias de Rio de Onor, Guadramil, Deilão e Petisqueira. Porém, a fala leonesa tem sido dada como extinta nestas aldeias, embora não seja totalmente clara a situação de Rio de Onor.
Apesar de já não se falar mirandês nessa região mais vasta, ainda pode falar-se de uma cultura comum, em particular na área correspondente à medieval Terra de Miranda (concelhos de Miranda do Douro, Vimioso, Mogadouro e parte dos concelhos de Freixo de Espada à Cinta, de Bragança e de Macedo de Cavaleiros), cultura essa que se manifesta pelo ar de família que o vocabulário usado continua a manter, pela fonética e muitas construções sintácticas do português falado nessa zona, pela similitude de festas, tradições, música e dança.
Quantas pessoas falam mirandês?
Não existe um cálculo rigoroso do número de falantes de mirandês, tendo esse número evoluído quer por razões demográficas, quer por razões sócio-linguísticas.
José Leite de Vasconcelos, por volta de 1900, calculou que seriam, em termos gerais, 15 000 falantes, baseado nos censos populacionais da época e tomando como boa a ideia de que era de 100% a percentagem de falantes nas aldeias identificadas como falando a língua mirandesa. Essa consideração deve considerar-se como correta, apesar de os mirandeses serem, já nessa época, bilíngues, pois eram obrigados a usar a língua portuguesa em situações de relação institucional, quer de natureza política (mais ocasional) quer de natureza religiosa (contínua desde o século XVI). Até há relativamente pouco tempo, esse número tem sido repetido, porém, a situação alterou-se profundamente. Se outras razões não existissem, bastaria ter em conta a diminuição da população, a partir de meados dos anos sessenta do século XX, para que tal número não possa já ser aceite.
Recentemente têm-se apresentado números que variam entre um mínimo de 5000 falantes, contando apenas os residentes na região de origem, e um máximo de 10 000, contando também os imigrantes e emigrantes. Na fixação desses números tem-se também em conta o menor ou maior conhecimento da língua e o seu uso menos ou mais regular. Se nos fixarmos num número entre aqueles dois acima referidos, poderemos não andar muito longe da realidade do número de falantes, isto é, de conhecedores da língua. Porém, se atendermos estritamente ao uso regular da língua em situações de vivência social e familiar, o número de pessoas que a usam com regularidade poderá ser um pouco inferior.
Um fato notório e por todos reconhecido é o da diminuição do número de falantes ao longo de todo o século XX, em particular a partir dos anos sessenta, erosão que ainda não se pode considerar estancada. Essa erosão tem levado muitos autores a anunciar a extinção da língua mirandesa para muito brevemente, chegando mesmo a dizer-se que não iria além dos anos 80 do século XX, mas a verdade é que ela continua viva e as profecias têm-se revelado apressadas.
Apesar de viva, a língua mirandesa tem vindo a sofrer alguma erosão, em particular desde meados do século XX, perdendo em número de falantes para a língua portuguesa que, por razões várias, não tem cessado de aumentar a sua pressão sobre a língua mirandesa, a construção das barragens do Douro internacional (Picote, Miranda do Douro e Bemposta), trouxe à região de Miranda milhares de falantes de português, que passaram a viver nas aldeias, até aí exclusivamente falantes de mirandês, forçando a que o português passasse a ser usado com regularidade nos atos externos da comunidade e inibindo a fala pelo uso de chacota em relação à língua mirandesa; um segundo momento deu-se com a generalização do ensino, primeiro ao nível da escola primária, até aos anos 50, e depois até ao ensino secundário, o que ocorreu ao longo dos anos 60 e 70 do século XX; por esta altura também se generalizou em todo o país o uso do rádio e da televisão em português; ao longo dos anos sessenta daquele século, praticamente todos os jovens foram incorporados no exército por períodos muito longos, devido à guerra colonial, fato que foi decisivo para que o português ganhasse terreno e profundidade como língua do dia a dia, pois muitos desses jovens passaram a ter mais competências em língua portuguesa do que em língua mirandesa; por fim e, em geral, deu-se uma melhoria das condições de mobilidade das pessoas, aparecendo outros sectores de atividade econômica como alternativos à agricultura, onde o emprego exigia o domínio falado da língua mirandesa, fato que foi essencial para que o mirandês tivesse perdido terreno como língua de primeira escolha da família.
Hoje, a língua mirandesa é ameaçada na sua sobrevivência tanto por factores internos, em particular a desertificação da região onde se fala e o enfraquecimento do modo de transmissão familiar, como por factores externos, em particular os resultantes da pressão exercida pelos meios de comunicação social, pela escola e pelos meios considerados de sucesso econômico, em particular a empregabilidade, continuando, em cúmulo, e essa é uma questão essencial, excluído como língua das instituições, em particular das instituições políticas locais.
Qual a origem da língua mirandesa?
A língua mirandesa tem a sua origem num dos romances que se formaram na Península Ibérica a partir do latim, o romance que deu origem à família de línguas astur-leonesas – onde a língua mirandesa se integra – , que se formaram entre os séculos VI-VIII. Toda a região estava integrada no império romano e era habitada pelo povo Astur, e era a tribo dos Zoelas ou Zelas que tinha assento no que é hoje a terra de Miranda, embora ocupando uma área mais vasta que abrangia uma parte importante do atual distrito de Bragança, em Portugal, e a região de Carvalheda, de Alba e de Aliste, delimitada pela serra de Culebra e os rios Esla e Douro, na atual província de Zamora, em Espanha.
É necessário lembrar que, além do latim, outras línguas contribuíram para a conformação do astur-leonês. Desde logo a língua falada pelos povos que tinham assento na região, mesmo antes da chegada dos romanos, isto é, os astures e, no caso particular da terra de Miranda, os zoelas. Sucessivamente, por esta região passaram, dito de forma muito geral e imprecisa, suevos, visigodos e árabes que foram deixando a sua marca, embora pouco pronunciada no caso dos suevos e dos árabes. Em qualquer caso, a terra de Miranda foi sempre, desde há mais de dois mil anos, uma terra de fronteira, facto que é sempre gerador de influências dos povos vizinhos e daqueles que para lá se deslocam para estarem mais afastados do poder dos reis. Essa característica de terra raiana, no período do nascimento da língua, foi particularmente significativa nos séculos VI-VIII, pois sabemos que por aqui passava o limes (faixa de fronteira) entre os reinos suevo e visigodo, facto bem documentado pelo topônimo Mogadouro.
O astur-leonês foi a língua falada no reino de Leão, desde a sua origem, com excepção da zona galaico-portuguesa. Nessa altura era a língua da corte e dos mosteiros, escrita em milhares de documentos até aos séculos XIII-XIV. Era, portanto, uma língua de cultura e jurídica, seguida pelas instituições, nomeadamente os mosteiros, sendo de destacar na terra de Miranda a influência dos Mosteiros de Moreruela, junto a Zamora, e de San Martin de Castañeda (Sanábria). No tombo do mosteiro de Moreruela ficaram-nos inúmeros documentos relativos às Terra de Miranda nos séculos XII-XIV, muitos deles escritos num leonês muito próximo do mirandês atual.
Deve dar-se um particular destaque à influência moçárabe na língua mirandesa, já que muitos foram os colonos moçárabes que vieram para a terra de Miranda depois da expulsão dos árabes, logo do início da expansão do reino de Leão. Essa influência moçárabe, porém, ainda está pouco estudada.
Desde a sua fundação, a fronteira política de Portugal não coincide com a fronteira linguística do galaico-português. Sempre se falou outra língua em Portugal, além do português, a língua astur-leonesa, que, nesta região, evoluiu para o atual mirandês. Pode mesmo dizer-se que uma parte importante da nobreza essencial à formação de Portugal, como os Bragançãos, e os próprios príncipes que estão na sua origem, como D. Teresa e seu filho, D. Afonso Henriques, eram também falantes de leonês. Portanto, em conclusão, a língua mirandesa é, a justo título, uma língua de Portugal, elemento essencial da sua história, da sua cultura, da sua identidade e da sua existência.
Alguns autores procuraram demonstrar que o mirandês não era originário da terra de Miranda, mas se devia a colonização leonesa levada a cabo nos séculos XIII e XIV, quer pelos frades do Mosteiro de Moreruela quer por outros colonos leoneses. Porém, além de sabermos hoje que essa colonização foi muito pouco profunda e se limitou a algumas aldeias da terra de Miranda, temos todo um conjunto de outros elementos e documentos que nos mostram inequivocamente que a língua mirandesa sempre teve assento no seu atual território e não resulta de uma importação tardia. Desde logo, em documentos do século XII, relativos a aldeias da terra de Miranda e muito anteriores à colonização cisterciense de Moreruela, já encontramos topônimos escritos em língua astur-leonesa, com as características da língua mirandesa, como é o caso da doação do reguengo de Palaçoulo por D. Afonso Henriques, em 1172, a Pedro Mendes, L Tiu, topônimos esses que ainda hoje continuam a ser usados com a mesma forma que apresentam nesse documento. Além disso, a tese do despovoamento da região de Miranda durante o período posterior à conquista árabe, em que assentam as opiniões acima referidas, não lhe é hoje reconhecido qualquer fundamento, pois está demonstrado que houve continuidade de povoamento da terra de Miranda desde antes da fixação dos romanos nesta região, habitada por uma específica tribo astur, os zoelas ou zelas, persistindo um número significativo de topônimos anteriores à vinda dos árabes.
A partir da criação da vila de Miranda, em 1289, mas sobretudo a partir do século XVI, com a elevação de Miranda do Douro a cidade e a criação do bispado (1545), a língua mirandesa enveredou por caminhos que lhe fizeram ganhar características próprias no conjunto das línguas astur-leonesas, embora sem pôr em causa a sua pertença a essa família de línguas. As características próprias que o mirandês veio a ganhar exigem a sua consideração como língua, e não como mera expressão dialectal de alguma outra língua astur-leonesa.
Até ao fim do século XIII a região de Miranda não teve contatos com o português, tal apenas acontecendo, em grau diminuto, após a elevação de Miranda a vila (1298), com a vinda de funcionários do rei. Esse contacto com o português não cessou de aumentar, sobretudo a partir da constituição do bispado de Miranda (1545), trazendo uma significativa influência à língua mirandesa, outro tanto se dando com o castelhano, nomeadamente dos séculos XVII a XIX, factos que ajudaram a que a língua mirandesa ganhasse características muito próprias quer ao nível da sua estrutura quer ao nível do seu vocabulário, embora sem deixar perder a sua essência leonesa.
Tal como a língua mirandesa, também outras línguas astur-leonesas ganharam algumas características próprias, de que é exemplo o asturiano, falado no principado das Astúrias e reconhecido como língua por estatuto do principado. Apesar das diferenças, essas várias línguas nunca perderam o ar de família que as continua a unir, quer em termos estruturais quer em termos históricos. É nessa base de reconhecimento dos laços históricos comuns, mas de aceitação das diferenças que os ventos da história lhe fizeram ganhar, que é possível restabelecer e desenvolver laços seguros entre as várias línguas astur-leonesas, sem menorizar quem quer que seja e sem deixar de reconhecer as diferenças efetivamente existentes. Esse é um processo delicado, necessariamente lento, e que vai exigir ainda muito trabalho e algum tempo, já que deve ser um processo não apenas exigido por alguns intelectuais, mas pelos falantes em geral e pelas suas instituições representativas.
Como se deu o processo de menorização da língua mirandesa?
O desaparecimento do Reino de Leão privou a língua astur-leonesa de um centro de poder que permitisse a sua irradiação e, sobretudo, a sua uniformização e consolidação como língua. É preciso lembrar que, nessa altura dentro de cada língua predominava uma grande diversidade de local para local, fruto de influências e origens com diferenças importantes e ausência de uma política centralizada capaz de a unificar quanto a todas as suas características, levando ao seu acantonamento progressivo nas zonas rurais.
Nessa situação, as línguas astur-leonesas, e também o mirandês, ficaram excluídas dos grandes movimentos culturais dos séculos XV-XVI, como o humanismo e o renascimento, que permitiram o enorme salto dado pelas línguas de poder, ditas nacionais, como o português e o castelhano. É por essa altura que se inicia ou acentua o processo de menorização dessas línguas, bem expresso, por exemplo, em alguns autos de autores teatrais do século XVI como Juan del Encina, em Espanha, e Gil Vicente, em Portugal, mas presente como tópico obrigatório em quase todos os autores desse tempo, incluindo Miguel de Cervantes. É por este período que culminam os processos de implantação das chamadas línguas nacionais, quer como línguas da administração pública, quer como línguas institucionais em geral. De grande eficácia institucional foi o chamado movimento para «rezar em lingoagem» (português), desencadeado e imposto pelas Constituições Episcopais, sobretudo nos séculos XV e XVI, que impôs o português como a única língua digna de falar com Deus. É essencial não esquecer que a evolução histórica que liga o mirandês às outras línguas astur-leonesas é também a raiz das características que a conformaram como uma língua de Portugal, razão que talvez seja a principal da sua subsistência até aos nossos dias.
Sobretudo desde essa altura, o mirandês passou a ser considerado como fala de gente inculta, como «fala charra» ou «fala caçurra», objecto de chacota. A regra a seguir, por parte da quase totalidade dos mirandeses letrados, era abandonar a fala materna em favor da língua «grabe» ou «fidalga», o português. Havia-se perdido o elo com a sua origem, e essa perda de memória histórica levou a que lançasse raízes a ideia de que o mirandês não era uma língua outra, mas um português mal falado, uma mera variedade do português, própria de gente atrasada e inculta. Tal conjunto de factos teve profunda influência na língua em si, mas também no uso que passa a ser exclusivamente intracomunitário, assumindo o português o estatuto de língua institucional a todos os níveis, a partir daí se entranhando nos mirandeses alguns complexos em relação à sua fala, que ainda não desapareceram completamente.
A mesma perda de memória histórica é responsável por tanta gente ter estranhado o reconhecimento, através de lei, do mirandês como língua. Também por isso, alguns ainda pensam que o mirandês nasceu como língua em 1999, mas a lei limitou-se a reconhecer o que já era uma língua há muitas centenas de anos.
Porque se manteve o mirandês até aos nossos dias?
A maioria dos autores tem atribuído a manutenção da língua mirandesa a dois factores fundamentais: o isolamento em relação ao resto do país; a contínua e profunda relação com os povos do outro lado da fronteira, em particular das regiões de Aliste e de Sayago.
O argumento do isolamento não tem fundamento, sendo muito limitada a sua valia: por um lado, a terra de Miranda não estava mais isolada do que as terras contíguas, onde deixou de se falar mirandês; por outro lado, a partir da criação do bispado de Miranda e da elevação de Miranda do Douro a cidade (1545), esta passa a ser um centro de poder e de cultura, com um número razoável de pessoas letradas e em estreito contacto com o resto do país; fundamental é dizer-se que os mirandeses são, pelo menos, bilíngues desde há vários séculos, isto é, falam o mirandês e o português, o que não sucederia se o isolamento fosse o que se diz.
O argumento do estreito contacto com as regiões fronteiriças contíguas, sobretudo Aliste e Sayago, faz todo o sentido, já que se falava leonês dos dois lados da fronteira, pelo menos até fins do século XIX ou princípios do século XX.
A este argumento há a acrescentar o facto de o mirandês ser uma língua, isto é, de dispor de mecanismos geradores do seu desenvolvimento, geradora de forte consciência linguística e com capacidade de auto-subsistência.
Por fim, há ainda que referir o sistema de uso diferenciado do português e do mirandês, de modo muito rígido, permitindo a subsistência e desenvolvimento de ambas as línguas em simultâneo, com usos paralelos que não interferiam um com o outro, o que permitia aligeirar a pressão sobre o uso do mirandês. Este uso diferenciado, sobretudo a partir do século XVI, pode ser assim resumido: o português é a língua institucional e de contacto com elementos estranhos à comunidade; o mirandês é a língua da comunidade, quer nas relações sociais e familiares, quer nas relações de trabalho.
O mirandês é uma língua ou um dialeto?
As palavras «língua» e «dialeto» nem sempre têm o mesmo significado para os diversos autores. Porém, é geralmente aceite que uma língua se distingue de um dialeto pelo seu reconhecimento político, o aconteceu com o mirandês através da lei 7/99, de 29 de Janeiro, aprovada pela Assembleia da República. Tal significa que a distinção é colocada em aspectos externos à própria língua, o que diz bem da manipulação política, e até ideológica, a que aquelas palavras estão sujeitas.
Uma língua existe sempre que estejamos perante um sistema linguístico gramaticalmente perfeito e com características distintivas próprias, o que é reconhecido ao mirandês desde que, nos fins do século XIX, foi estudado por José Leite de Vasconcellos.
O uso da língua, independentemente do nome e qualquer que ela seja, é um direito fundamental que radica na dignidade de cada uma das pessoas que a falam, bem como da comunidade que através dela se expressa e com ela se identifica. Esta é a questão essencial que muitos arautos dos direitos humanos ainda não perceberam entre nós, a começar pelos ‘papas’ do constitucionalismo e os certos militantes de uma língua portuguesa. Esta, estou em crer, será tanto maior quanto menos se quiser afirmar de modo colonialista sobre as línguas com quem ao longo da história foi entrando em contacto, e muitas foram. Os mirandeses são hoje bilíngues e, a justo título, não ostentam menos orgulho na sua língua portuguesa pelo facto de também falarem o português.
Quais são as principais características da língua mirandesa?
Apresentam-se de seguida apenas as principais características, sem as esgotar. Para a sua mais fácil apreensão faz-se uma comparação com o português e com o castelhano, assim melhor fazendo ressaltar essas características, que nuns casos a diferenciam e noutros casos a aproximam de uma ou outra dessas línguas.
i – O mirandês (salvo no dialeto sendinês) palatiza o ‘l’ inicial, o que não acontece em português nem em castelhano.
Exemplos:
lhuna – lua (port.), luna (cast.); lhana – lã (port.), lana (cast.); lheite – leite (port.), leche (cast.); lhino – linho (port.), lino (cast.); lhobo – lobo (port.), lobo (cast.); lhéngua – língua (port.), léngua (cast.); lhargo – largo (port.), largo (cast.); lhabar – lavar (port.), lavar (cast.).
ii – Há ditongos crescentes [«ie», «uo»] que afastam o mirandês do português. No caso do ditongo crescente «ie» o mirandês aproxima-se do castelhano, embora tenha uma sonoridade completamente diferente. Já no que se refere ao ditongo crescente «uo», ele é bem diferenciado do ditongo castelhano «ue».
Exemplos com «ie»:
castielho – castelo (port.); tierra – terra (port.); ciento – cento (port.); miel – mel (port.); abierto – aberto (port.); bien – bem (port.); niebe – neve (port.); siempre – sempre (port.); fierro – ferro (port.); diente – dente (port.); semiente – semente (port.); piedra – pedra (port.), piedra (cast.).
Exemplos com «uo»:
fuonte – fonte (port.), fuente (cast.) ; buono – bom (port.), bueno (cast.); puonte – ponte (port.), puente (cast.); uolho – olho (port.), ojo (cast.); buolta – volta (port.), vuelta (cast.); nuoç – noz (port.) nuez (cast.); puorta – porta (port.), puerta (cast.); nuobo – novo (port.), nuevo (cast.); nuosso – nosso (port.), nuestro (cast.).
iii. O mirandês conseva o ‘l’ e o ‘n’ latinos intervocálicos, que caem no portugês. Nesta parate, o mirandês tem características similares ao castelhano.
Exemplos relativos à manutenção do «n» intervocálico:
arena – areia (port.), arena (cast.); tener – ter (port.), tener (cast.); mano – mão (port.), mano (cast.); bena – veia (port.), vena (cast.); sano – são (port.), sano (cast.).
Exemplos relativos à manutenção do «l» intervocálico:
pila – pia (port.); pila (cast.) malo – mau (port.); malo (cast.); bolo – voo (port.); vuelo (cast.); palo – pau (port., palo (cast.).
iv. O ‘ll’ e o ‘nn’ duplos intervocálicos latinos palatizaram-se em mirandês, mas não em português. Neste ponto, o mirandês volta a aproximar-se do castelhano.
Exemplos relativo a «ll / lh»:
cabalho – cavalo (port.), galho (cast.); galho – galo (port.), galho (cast.); castielho – castelo (port.), castillo (cast.); galhina – galinha (port.), gallina (cast.); calho – calo (port.), callo (cast.); calhar – calar (port.), callar (cast.).
Exemplos relativo a «nn / nh»:
anganho – engano (port.), engaño (cast.); panho – pano (port.), paño (cast.); canha – cana (port.) canha (cast.); abelhana – avelã (port.) avellana (cast.); anho – ano (port.), año (cast.).
v – O ‘f’ latino conserva-se em mirandês e português, mas não em castelhano, o que afasta o mirandês dessa língua, mas o aproxima do português.
Exemplos:
afogar-se – ahogarse (cast.); forno – horno (cast.); fermoso – hermoso (cast.); filho – hijo (cast.); falar – hablar (cast.); fazer – hacer (cast.); figo – higo (cast.); ferida – herido (cast.); ferradura – herradura (cast.); fidalgo – hidalgo (cast.).
vi – A nasal ‘ão’ portuguesa não existe no mirandês (salvo em um tipo de casos no dialeto sendinês), o que o afasta do português e o aproxima do castelhano.
Exemplos:
son – são; pan – pão; armano – irmão; perdon – perdão; mano – mão; oupenion – opinião.
vii – a inexistência de vogais altas átonas em começo absoluto de palavra, o que afastar o mirandés tanto do português como do castelhano.
Exemplos relativo a «i», «e», «o», «u»:
einemigo, eiducaçon, eisame, eiquipa, eidade, eigreija, eigual, eideia.
oufender, oufício, oureilha, oulibeira, oulor, ouraçon, oupenion, oufecial.
Exemplos relativos a «in», «en/em»:
anganhar, anfenito, amprego, anformar, angenheiro, anterrar, ancapaç, anjusto, anteiro, antençon, amportante, ambeija, ambentar, anfáncia.
viii – no que respeita aos modos de formação de palavras em mirandês, este apresenta diferenças muito significativas, bem para além do sufixo dimuntivo –ico que costuma ser indicado; dada a extensão dessas diferenças referirei apenas algumas das mais significativas:
– Prefixos: alte- (altefalante, altemoble), arre- (arrepassar), cus- (custruir), ei (eicelente); stra- (stramuntano, strefigurar, streponer);
– Sufixos: -ulho (cascabulho), -ielho (boubielho), -anco (burranco), -iço (pequerrico), -ieta (ourrieta), -in (foucin, boucin), -uncho (ferruncho), -aige (biaige), -aina (botaina, chitaina), -iego (anhiego, dariego, paniego), -onco/-ongo/-unco (medonco), -orra (machorra), ieça (burrieça), -onda (maronda), -eç (nineç, belheç, madureç), -able (adorable, amable), -ible (ambencible), -uro (filaduro).
Deve ainda assinalar-se a inexistência em mirandês do prefixo des-, reduzido a z- ou ç-, o que afasta o mirandês tanto do português como do castelhano.
Exemplos:
zamprego, zaparecer, zgrácia, zgusto, zmaio, zbio, zanganhar, zamparado.
çcascar, çclarar, çpedida, çcansar, çcargar, çcoser, çcubierta, çcuntar, çpreziar.
ix.Em mirandês não existe o som «j», antes de se mantendo o som «lh», o que aproxima doportuguês e afasta do castelhano.
Exemplos:
filho – hijo (cast.); fuolha – hoja (cast.); mulhier – mujer (cast.).
x. Praticamente não existem em mirandês palavras terminadas em «ia», em «io» ou em «ua», mas em «ie», em «iu» e em «ue».
Exemplos quanto a ia / ie:
frie – fria; tie – tia; die – dia, Marie – Maria.
Exemplos quanto a io / iu:
frio – friu; tiu – tio,
Porém, as características da língua mirandesa não se esgotam nos apectos que acabámos de referir, nem se pretende, num escrito breve como este, dar conta de todos os aspectos. Mais algumas características essenciais se deixam a seguir se deixam a título indicaticativo e de modo abreviado:
– uma conjugação verbal específica, embora o sistema verbal do mirandês seja semelhante ao do português;
– os artigos definidos l (o) e la (a), ls (os), las (as), distintos tanto do português como do castelhano.
– os pronomes pessoais (you, eu) e possessivos (miu, meu; mie, minha, etc.), muitos diferentes dos portugueses e também com assinaláveis diferenças em relação ao castelhano;
– modos de tratamento de respeito, específicos e distintos, seja em relação ao português, seja em relação ao castelhano;
– várias palavras com género diferente em relação ao português. Ex. la calor, l febre, l quemido, la questume.
– uma série de advérbios e locuções inexistentes em português. Ex. ende, sourtordie, anque, antoce, quantá.
Também a sintaxe do mirandês apresenta muitas características próprias quer em relação ao português quer em relação ao castelhano, afirmação que contraria reiteradas e habituais afirmações que a esse respeito são feitas, sobretudo no que respeita à sintaxe do português e do mirandês. Essas afirmações, porém, apenas se devem à falta de estudo e de conhecimento da língua mirandesa no domínio da sintaxe.
Quanto ao vocabulário deve dizer-se que o mirandês apresenta muitíssimo vocabulário distinto do português, apesar de haver uma grande continuidade lexical como acontece em todas as línguas de origem latina da Península. Deve realçar-se que muita da proximidade que existe com o português de Trás-os-Montes Oriental e com a zona de Riba-Côa deriva da influência leonesa que o português sofreu nessas zonas, facto que ainda não está adequadamente estudado, já que até à Alta Idade Média foram zonas de fala leonesa.
Mas também há semelhanças entre o mirandês e o português, em particular o do norte interior, que muito o afastam do castelhano de que se destaca:
Casos similares ao português do Norte:
– um sistema de quatro sibilantes (por ex. pronunciam-se diferentemente cesta, sesta; maça, massa; cozer, coser; beiço, beiso; trás, traç); neste casos o mirandês afasta-se quer do português padrão quer do castelhano ou mesmo das restantes língua astur-leonesas;
– ausência de «v», existindo apenas «b» (ex. baliente, biaige, baca).
Concluindo, que a exposição já vai longa, apesar de lacunar, pode dizer-se que o mirandês tem características próprias que o distinguem tanto do português como do castelhano e o filiam nas línguas asturo-leonesas. Porém, deve acrescentar-se, partilha igualmente semelhanças e influências daquelas duas línguas, embora com predomínio da influência do português. Isso em nada afeta a sua autonomia e a sua estrutura perfeita como língua, não sendo uma mistura entre aquelas duas línguas.
A língua mirandesa tem as mesmas características em todo o lado ou apresenta variedades?
Desde José leite de Vasconcellos têm sido distinguidas três variedades dentro do mirandês: o mirandês do norte ou raiano, que é falado em várias aldeias junto à fronteira (raia seca) com Espanha; o mirandês do sul ou sendinês, que é falado na vila de Sendim; o mirandês central que é falado nas restantes aldeias e que foi adotado como padrão pela Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa. Assim, como qualquer língua, e apesar do seu reduzido número de falantes e da pequena área geográfica onde se fala, também o mirandês apresenta importante variação interna, elemento essencial da sua riqueza como língua. Aqui se deixam os mais marcantes traços distintivos de cada uma das variedades.
O mirandês central ou padrão
As principais características do mirandês central foram apresentadas no ponto anterior, ainda que de modo relativo. Quanto às restantes variedades a melhor maneira de as apresentar é dizer aquilo em que divergem face ao mirandês central. Convém prevenir que essas distinções não são absolutas, já que muitas aldeias onde predomina a variedade do mirandês central apresentam traços do mirandês raiano e do sendinês, e também existe uma grande proximidade entre vários fenômenos do mirandês raiano e do sendinês. Em geral, todas as variedades apresentam algum vocabulário diferenciado, várias formas gramaticais distintas, e também algumas regras sintácticas próprias.
Ainda no que respeita ao mirandês central, anotem-se dois fenômenos que serão relativamente recentes, que também se verificam no mirandês raiano e a que apenas o sendinês tem sido imune:
– a tendência, hoje quase generalizada, para substituir as formas do artigo definido masculino l, ls por al, als;
– a tendência quase generalizada para dizer como an / am as sílabas en / em quando são intercaladas (ou não em início absoluto de palavra) átonas: antender > antander; tendência > tandéncia; centeno > çanteno.
O sendinês ou mirandês do Sul
Das variedades do mirandês, a que apresenta diferenças mais sensíveis é o sendinês. Em termos de ortografia, a convenção seguida é a mesma, apenas se permitindo que os sendineses, se o desejarem, possam escrever com l- em início de palavra em vez de lh- (ex. luna / lhuna, para a palavra ‘lua’). Tal liberdade foi consagrada na 1ª Adenda à Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa, de Fevereiro de 2000.
Outras distinções a assinalar, além da sintaxe e do léxico, que apresentam diferenças muito significativas, são as seguintes:
i. – o tratamento de respeito é, no mirandês central e raiano, na 2ª pessoa do plural (Exemplo, Á tiu Antonho, bós stais an casa manhana a la purmanhana?), e é, no sendinês, na 3ª pessoa do singular (Á tiu Antonho, el stá an casa manhana a la purmanhana?);
ii. – os ditongos crescentes «ie» e «uo» não têm vigência em sendinês. Por isso, e como exemplo, as palavras castielho, tierra, ciento, miel, abierto; bien, niebe, siempre, fierro, diente, semiente, piedra lêem-se (sem reflexo na escrita) em sendinês castilho, tirra, cinto, mil, bin, nibe, simpre, firro, dinte, seminte, pidra. Também as palavras fuonte, buono, puonte, uolho, buolta, nuoç, puorta, nuobo, nuosso se devem ler an sendinês como funte, buno, punte, ulho, bulta, nuç, purta, nubo, nusso. Em qualquer caso, deve dizer-se que as vogais «i» e «u», nesses casos, se distinguem de modo muito particular, a assinalar características próprias.
iii. – o sendinês tem um sistema próprio de ditongos, correspondente às vogais «i» e «u» tônicas e que soam de modo difícil de representar, mas que se pode dizer que variam entre «ei/ai/uoi» (exemplos: bino, mil, çtino) e «iu/au» (exemplos: burra, mula) respectivamente.
iv. – a queda do «g» depois de –i- tónico [ami(g)o, fi(g)o, tri(g)o], traço que também se verifica em Paradela (zona raiana) e, de modo menos regular, em outras aldeias como Constantim (zona raiana);
v. – a palatalização de «c» em –ico (ex. cachico) e de «g» em –ingo/inga (ex. demingo, spingarda), traço que também se apresenta em outras localidades, embora em algumas de modo menos regular;
vi. – o ditongo mirandês –on tem pronúncia similar ao português –ão (coraçon / coração);
vi. – apresenta significativas diferenças ao nível das formas de quase todos os pronomes (ex.: esto / aquesto, esso / aquesso, aqueilho; algue, nanhue) e forma também específicas em advérbios (ex.: antoce).
O mirandês raiano
O mirandês raiano apresenta uma grande proximidade do mirandês central, sendo as diferenças mais acentuadas numas aldeias que nas outras, pois uma das características dessa variedade é a sua falta de unidade de aldeia para aldeia. Podem, porém, apresentar-se as seguintes diferenças fundamentais, além de aspectos de léxico:
i. – o artigo definido masculino assume as formas lo, los em vez de l, ls, embora o uso esteja mais vulgarizado na forma do plural, usando-se no singular a forma al, com excepção de Constantim, no que é coincidente com a maioria das expressões do mirandês central;
ii. – o uso de algumas formas de conjunções e advérbios com características próprias, por ex. más em vez de mais, fenômeno que é extensivo a várias aldeias que integram o mirandês central.
Há outros fenômenos a referir, mas que apenas se verificam em algumas aldeias:
i. – queda do «g» intervocálico em termos idênticos ao verificado em Sendim, com particular destaque para Paradela;
ii. – o uso do plural feminino «-es» em vez de «-as», em São Martinho de Angueira;
iii. – o uso de algumas formas do pronome possessivo (esso/aquesso, esto/aquesto) tal como em Sendim;
iv. – sobretudo em Paradela, a palatalização de «c» em –ico (ex. cachico) e de «g» em –ingo/inga (ex. deimingo, spingarda), tal como no sendinês.
Como se dá a transição do mirandês de língua exclusivamente oral a língua também escrita?
A língua mirandesa manteve-se como língua exclusivamente oral até 1884, ano em que José Leite de Vasconcelos publicou o poemário Flores Mirandesas, a primeira obra escrita em mirandês. No último quartel do século XIX vários autores mirandeses publicaram obras em mirandês, em particular traduções de autores clássicos e de «Os Quatro Evangelhos», com destaque para Bernardo Fernandes Monteiro, Manuel Sardinha e Francisco Meirinhos. A escrita seguida por José Leite de Vasconcelos era muito complexa, visando expressar toda a riqueza da oralidade, mas um sistema de escrita mais simples foi apresentado por Gonçalves Viana, depois seguido por vários autores. Daí em diante a escrita da língua mirandesa oscilou entre aquelas duas propostas, até que em 1999 é publicada a Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa, cujo projeto esteve em discussão desde 1995.
A Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa foi elaborada, com o apoio de vários falantes, por estudiosos de mirandês e por linguistas dos Centros de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Em 2000 foi aprovada a Primeira Adenda à Convenção Ortográfica e está em discussão pública a Segunda Adenda.
A Convenção Ortográfica da Língua Miranesa, e as suas Adendas, veio permitir uma crescente harmonização da escrita da língua, hoje seguida pela esmagadora maioria dos autores que escrevem em mirandês e adotada no ensino do mirandês nas escolas.
A discussão e investigação em torno da escrita da língua mirandesa ainda não se pode considerar concluída, nomeadamente porque a Convenção Ortográfica e as suas Adendas não abarcam todos os aspectos relativos à escrita da língua. A edição de manuais de ensino, de uma moderna e desenvolvida gramática do mirandês (já existe uma gramática publicada em 1900 por José Leite de Vasconcelos) e de um grande dicionário de língua mirandesa, são também materiais essenciais nesse percurso de normatização da língua.
Qual o atual estatuto jurídico da língua mirandesa?
A língua mirandesa é hoje uma língua oficial de Portugal, embora de natureza regional ou local e o elenco de direitos reconhecidos em lei esteja reduzido ao seu mínimo, ou até menos que isso. A aprovação da Lei nº 7/99, de 29 de Janeiro, por unanimidade e aclamação na Assembleia da República, é fruto, em primeiro lugar, dos esforços e da visão do deputado mirandês Júlio Meirinhos. Para tal contribuíram também os esforços de vários mirandeses e de acadêmicos que puseram em destaque os aspectos científicos da língua, alicerçando a sua credibilidade. Dessa lei se destacam os seguintes preceitos: “O presente diploma visa reconhecer e promover a língua mirandesa” (art. 1º); “O Estado Português reconhece o direito a cultivar e promover a língua mirandesa, enquanto patrimônio cultural, instrumento de comunicação e de reforço de identidade da terra de Miranda.” (art. 2º); “É reconhecido o direito da criança à aprendizagem do mirandês, nos termos a regulamentar.” (art. 3º); “As instituições públicas localizadas ou sediadas no concelho de Miranda do Douro poderão emitir os seus documentos acompanhados de uma versão em língua mirandesa.” (art. 4º).
A lei do mirandês, como passou a ser conhecida, pese embora a viragem que significou para a a língua mirandesa, deve ser encarada com todas as suas limitações. Apesar destas, o Estado Português e as Autarquias da região onde se fala a língua continuam, incompreensivelmente, sem assumir os seus compromissos em relação à língua, tal como resultam da lei.
Qual a situação do ensino da língua mirandesa?
O ensino da língua mirandesa iniciou-se em 1985/86, na Escola Preparatória de Miranda do Douro, com Domingos Raposo, aí se mantendo por vários anos, reduzido a duas turmas do 5º e do 6º anos.
Entretanto, o ensino foi regulamentado pelo Despacho Normativo, do Ministro da Educação, n.º 35/99, de 5 de Julho, na sequência da lei nº 7/99, de 29 de Janeiro. O ensino é considerado como opcional. Esta regulamentação do ensino sofre de graves deficiências, o que tem levado a uma diminuição do número de horas lectivas (agora reduzidas a uma hora semanal), a um processo de colocação de professores com graves irregularidades, à ausência de apoio à formação de professores e à edição de materiais de apoio ao ensino, entre outros problemas. Aguarda-se um novo estatuto do ensino do mirandês, cuja necessidade já foi publicamente reconhecida pelos dois principais partidos, e para que já foram apresentadas propostas ao Ministério da Educação, que continua sem dar resposta a este problema, tão simples de resolver.
Já em 2000, o ensino estendeu-se às escolas primária e preparatória de Sendim, com Carlos Ferreira. Hoje a língua mirandesa é ensinada em todas as escolas do concelho de Miranda do Douro, da pré-primária ao 12º ano, como disciplina de opção, devendo-se essa expansão aos esforços iniciados por Carlos Ferreira e continuados e levados a bom termo por Duarte Martins.
A língua mirandesa foi também ensinada na UTAD – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Pólo de Miranda do Douro), em cursos ministrados por Domingos Raposo, hoje, infelizmente, abandonados.
Fora do ensino oficial têm sido realizados vários cursos, de diferente natureza, apenas tendo carácter regular o ensino organizado pela Associaçon de Lhéngua Mirandesa, em Lisboa, desde 2001, em cursos iniciados por Amadeu Ferreira e hoje também ministrados por Francisco Domingues e por Bina Cangueiro.
Existe uma literatura em língua mirandesa?
Sempre existiu uma riquíssima literatura mirandesa de tradição oral, nos mais diversos domínios da expressão popular: poesia, romance, conto, cantiga, oração, etc. Uma parte importante desse patrimônio está ainda por recolher e, sobretudo, por organizar e estudar. Parte importante dessa literatura é em português e em castelhano, mas um núcleo significativo é em mirandês. Só por desconhecimento dos organizadores se pode compreender que apenas um poema popular mirandês figure na antologia Rosa do Mundo, editada em 2000 e que pretende ser representativa da poesia mundial dos últimos 2000 anos. Essa literatura, a par de outros aspectos da cultura mirandesa, faz parte do patrimônio cultural da humanidade
A literatura escrita em língua mirandesa inicia-se em 1884, com a publicação do poemário de José Leite de Vasconcelos, Flores Mirandesas. A este autor se devem também algumas traduções de trechos de Luís de Camões. Ainda no século XIX, assistimos à publicação de poemas originais por Francisco Meirinhos, de traduções de Camões e de Antero de Quental por Manuel Sardinha, de Camões e dos Quatros Evangelhos por Bernardo Fernandes Monteiro, autor que também publica a tradução de contos e diálogos vários. Deve-se a Francisco Garrido Brandão uma peça de teatro em mirandês, Sturiano i Marcolfa, publicada por José Leite de Vasconcelos e uma versão de inúmeros laços em mirandês, ainda inéditos..
Já no século XX, António Maria Mourinho publica vários poemas em mirandês, depois reunidos no volume Nuossa Alma i Nuossa Tierra, a que se veio juntar mais tarde o poema Scoba Frolida an Agosto e outros poemas dispersos. A um autor não mirandês se deve uma importante peça de teatro em mirandês, As Saias (1938), que chegou a ser representada no Teatro Nacional D. Maria II.
Este período, sem prejuízo do valor literário das obras produzidas, teve como principal finalidade o estabelecimento de um corpus que fixasse um patrimônio linguístico ameaçado, como é expressamente referido pelos autores. Porém, a evolução da língua mirandesa como língua literária, em sentido moderno, não tem parado, apesar de a pouca difusão das suas obras tornar tal realidade menos evidente. Também do ponto de vista literário não há línguas menores, porque nenhuma língua é, à partida, inferior a qualquer outra e a nenhuma está negada a capacidade de expressão literária elevada. É neste contexto que deve ser encarado o surto de literatura mirandesa a partir dos anos 90 do século XX, e o surgimento de autores vários que saliento têm vindo a publicar com mais ou menos regularidade:
i. na poesia, Adelaide Monteiro, Alcides Meirinhos, Amadeu Ferreira (e dos seus pseudônimos Fracisco Niebro, Marcus Miranda i Fonso Roixo), Célio Pires, Conceição Lopes, Domingos Raposo, Emílio Martins, José António Esteves, José Francisco Fernandes, Manuel Preto, Marcolino Fernandes, Rosa Martins.
ii. em prosa, Alcides Meirinhos, Alcina Pires, Alfredo Cameirão, Amadeu Ferreira (e o seu pseudónimos Fracisco Niebro i Marcus Miranda), Ana Maria Fernandes, António Bárbolo Alves, Bina Cangueiro, Carlos Ferreira, Duarte Martins, Faustino Antão, Válter Deusdado.
Várias das obras destes autores estão dispersas por jornais e revistas, em especial o Jornal Nordeste / Fuolha Mirandesa, mas também por sítios e blogs na internet, onde outros autores têm vindo também a fazer o seu caminho. A estes autores devem acrescentar-se vários escritores jovens que se têm revelado nos jornais escolares e na revista La Gameta. Muitas outras pessoas têm vindo a escrever mirandês com regularidade, mas já não no domínio literário, razão por que não são aqui referidas.
A capacidade de gerar literatura em vários níveis e em diversos gêneros tem sido seguramente um dos modos de afirmação da língua mirandesa. Apesar de tudo o que fica dito, a literatura mirandesa é sobretudo uma literatura do século XXI, pois nos poucos anos deste século se escreveu mais do que em toda a história da língua. Embora ainda muito presa ao seu próprio passado, de cunho memorialista, e ao tema da própria língua, a literatura mirandesa, em especial a poesia, cada vez mais se aventura pelos caminhos da modernidade, nenhum tema ou forma lhe sendo alheios.
Como tem acontecido em qualquer literatura nascente, também em mirandês é muito significativo o número de traduções de obras de vário tipo, em particular a banda desenhada (Asterix, l Goulés e L Galaton), o conto e a poesia (Ls Lusíadas) e a história (Stória dua Lhéngua i dun Pobo, de José Ruy), para referir apenas alguns exemplos.
Qual a importância da língua mirandesa para Portugal?
A necessidade da defesa das chamadas línguas minoritárias tem vindo a tornar-se uma evidência para cada vez maior número de pessoas. Esse é sobretudo um imperativo orientado a preservar uma parte indispensável do patrimônio cultural da humanidade. Daí que todo o processo de defesa e promoção da língua deva ser encarado como uma exigência de cidadania da mais alta importância, que não tem apenas uma dimensão local, mas nacional e internacional.
A diversidade linguística e cultural é uma riqueza para Portugal, integrante da nossa identidade. Aceitando a verdade histórica e sociológica, Portugal deve apresentar-se como país bilíngue e integrar essa referência nos programas das nossas escolas, dando a conhecer a todos os cidadãos a existência da língua mirandesa, sua origem e características.
A democracia linguística é um elemento importante da democracia, em geral, assente no respeito pela diferença. Não basta uma lei proclamatória, exigindo-se que o Estado, a nível nacional e local, concretize os compromissos que assumiu em lei, nos mais diversos domínios.
Além de um problema de dignidade dos seus falantes, as línguas são também um problema ecológico, entendido em sentido amplo, que a todos deve preocupar. Pela língua se exprimem culturas, tradições, saberes e modos de viver que são essenciais ao equilíbrio das sociedades e ao bem estar dos cidadãos. Também de Portugal. Se o mirandês desaparecer ninguém ganha nada com isso, mas Portugal, os portugueses e, dentre estes, os mirandeses ficam mais pobres.
Para os mirandeses e para todos os concelhos da terra de Miranda, em particular, o mirandês e a cultura mirandesa assumem-se também como um importante valor econômico, que importa ter em conta numa região que está em profunda depressão económica e em acelerado processo de desertificação.
Pelo facto de falarem outra língua, os mirandeses não são menos portugueses que os outros, como o demonstra a sua história, nem nunca quiseram ser outra coisa senão portugueses. Hoje os mirandeses continuam a ser bilíngues e a sua afirmação do mirandês não implica a negação do português. Defender, promover e desenvolver a língua mirandesa é um dever de cidadania que se impõe, nomeadamente a todos os mirandeses.
Por Amadeu Ferreira [Estudo publicado na Revista do Festival Intercéltico, Sendim, 2010]