Quem fala mais que uma língua, geralmente, domina os idiomas que conhece com facilidade. Mas, às vezes, podem ocorrer deslizes acidentais. E a ciência por trás de por que isso ocorre está revelando perspectivas surpreendentes sobre como o nosso cérebro funciona.
As pesquisas sobre como os poliglotas fazem malabarismo com mais de um idioma nas suas mentes são complexas, e às vezes, surpreendentes.
O que acontece é que quando um poliglota quer falar, os idiomas que ele conhece podem estar ativos ao mesmo tempo, mesmo que apenas um seja usado.
Esses idiomas podem interferir uns com os outros e interferir no raciocínio quando menos esperamos. E essas interferências podem manifestar-se não apenas em lapsos de vocabulário, mas até mesmo na gramática ou no sotaque.
“Por exemplo, quando quer dizer ‘dog’ (cão em inglês) como um bilíngue de francês-inglês, não apenas a palavra ‘dog’ é ativada, como também sua tradução equivalente, ‘chien’ (cão em francês), também é ativada”.
Dessa forma, a pessoa que está falando precisa ter algum tipo de processo de controle de linguagem. Se pensar bem, a capacidade dos indivíduos bilíngues e poliglotas de separar os idiomas que aprenderam é notável.
Como fazem isso é normalmente explicada por meio do conceito da inibição — uma supressão das línguas não relevantes.
Mas quando esse sistema de controle falha, intrusões e lapsos podem ocorrer. Por exemplo, a inibição insuficiente de um idioma pode fazer com que ele “apareça” e se intrometa quando deveria estar falando em uma língua diferente.
O próprio Declerck, que é belga, está acostumado a misturar idiomas acidentalmente. O seu repertório linguístico inclui holandês, inglês, alemão e francês.
Quando trabalhava na Alemanha, a viagem habitual de trem que fazia para voltar para casa na Bélgica passava por várias regiões com idiomas diferentes — um verdadeiro treino para suas habilidades de alternância de idioma.
“A primeira parte era em alemão, e eu entrava num trem belga em que a segunda parte era em francês. E depois, quando se passa por Bruxelas, eles mudam o idioma para holandês, que é minha língua nativa. Então, neste período de três horas, toda vez que o revisor vinha, eu tinha que trocar de idioma. Eu sempre respondia no idioma errado, de alguma forma. Era simplesmente impossível acompanhar”.
Erros de intrusão
Tamar Gollan, professora de psiquiatria da Universidade da Califórnia em San Diego, nos EUA, estuda há anos o domínio da linguagem em indivíduos bilíngues. E a sua pesquisa muitas vezes levou a descobertas contraintuitivas.
“Acho que talvez uma das coisas mais singulares que vimos em indivíduos bilíngues quando eles misturam idiomas é que, às vezes, parece que inibem tanto a língua dominante que, na verdade, acabam a ser mais lentos para falar em certos contextos”, diz ela.
Numa das suas experiências, Gollan analisou as habilidades de alternância de idioma de pessoas bilíngues em espanhol-inglês, fazendo-as ler em voz alta parágrafos que estavam apenas em inglês, apenas em espanhol, e parágrafos que misturavam aleatoriamente inglês e espanhol.
Os resultados foram surpreendentes. Mesmo que estivessem com os textos bem ali na frente deles, os participantes ainda cometeriam “erros de intrusão” ao ler em voz alta — dizendo acidentalmente, por exemplo, a palavra espanhola “pero” (que significa “mas”), em vez da palavra correspondente em inglês “but”.
Esse tipo de erro acontecia quase exclusivamente quando liam em voz alta os parágrafos mistos, o que exigia alternar entre os idiomas. O mais surpreendente foi que uma grande proporção desses erros de intrusão não eram palavras que os participantes haviam “saltado”.
Por meio do uso da tecnologia de rastreamento ocular, Gollan e a sua equipa descobriram que esses erros eram cometidos mesmo quando os participantes olhavam diretamente para a palavra em questão.
E embora o inglês fosse a língua principal da maioria dos participantes, eles cometeram mais erros de intrusão com palavras em inglês do que com as palavras que deviam dizer em espanhol, idioma que não dominavam tanto — algo que, segundo Gollan, é quase como uma inversão do domínio do idioma.
“Acho que a melhor analogia é imaginar que há uma condição na qual de repente se torna melhor em escrever com a sua mão não dominante. Chamamos isso de dominância invertida, e estamos dando grande importância a isso, porque quanto mais penso sobre, mais percebo o quão único e louco isso é”.
As experiências também se depararam com a dominância invertida noutra área surpreendente: a pronúncia. Os participantes, às vezes, liam uma palavra no idioma certo, mas com o sotaque equivocado. E, novamente, isso acontecia mais com as palavras em inglês (idioma dominante) do que em espanhol.
Até mesmo o uso da gramática na nossa língua nativa pode ser afetado de maneiras surpreendentes, especialmente se estivermos muito imerso num ambiente linguístico diferente.
“O cérebro é maleável e adaptável”, explica Kristina Kasparian, escritora, tradutora e consultora que estudou neurolinguística na Universidade McGill de Montreal, no Canadá.
Como parte de um projeto mais amplo feito para a sua tese de doutoramento, Kasparian e seus colegas realizaram testes com pessoas cujo italiano era a língua nativa e que haviam emigrado para o Canadá e aprendido inglês quando adultos.
Todos haviam declarado que seu italiano estava ficando enferrujado e que não o usavam muito no dia a dia. Os pesquisadores mostraram aos participantes uma série de frases em italiano e pediram-lhes para avaliar o quão aceitável eram gramaticalmente.
Ao mesmo tempo, a atividade cerebral deles também foi medida com um método de eletroencefalografia (EEG). As respostas deles foram comparadas às de um grupo de italianos monolíngues que vivia na Itália.
“Havia quatro tipos diferentes de frases, e duas delas eram aceitáveis tanto em italiano quanto em inglês, e duas delas eram aceitáveis apenas em italiano”, diz Kasparian.
Os migrantes italianos eram mais propensos a rejeitar frases corretas em italiano como não gramaticais, se não correspondessem à gramática correta do inglês.
E quanto maior a proficiência em inglês, há quanto mais tempo moravam no Canadá, e quanto menos usavam o italiano, maior a probabilidade de acharem que as frases corretas em italiano estavam incorretas gramaticalmente.
E quando viram frases que eram gramaticalmente aceitáveis apenas em italiano (mas não em inglês), os italianos que moravam no Canadá apresentavam padrões de atividade cerebral diferentes dos que viviam na Itália.
Na verdade, a sua atividade cerebral era mais consistente com o que seria esperado de falantes de inglês, diz Kasparian, sugerindo que seus cérebros estavam processando as frases de maneira diferente de seus homólogos monolíngues na Itália.
A prática cria a perfeição
Navegar por essas interferências talvez seja parte do que torna difícil para um adulto aprender um novo idioma, especialmente se tiver crescido monolíngue.
“Toda vez que você fala esse novo idioma, é como se o outro idioma dissesse: ‘Ei, estou aqui, pronto'”, explica Matt Goldrick, professor de linguística da Universidade Northwestern, em Illinois, nos EUA.
“Então o desafio é ter que suprimir essa coisa que é tão automática e tão fácil de fazer, em favor dessa coisa que é incrivelmente difícil de fazer quando você está aprendendo um idioma”.
“Está sendo obrigado a aprender a dominar algo que normalmente nunca tem que inibir, que apenas sai naturalmente, certo? Não há razão para conter. E acho que essa é uma habilidade muito difícil que alguém tem que desenvolver, e parte do motivo pelo qual é tão difícil”.
Uma coisa que pode ajudar? Ficar imerso no ambiente da língua estrangeira.
“Está criando um contexto no qual está retendo fortemente essa outra língua e está praticando bastante, retendo essa outra coisa, de modo que dá espaço para a outra (nova) língua se tornar mais forte”, diz Goldrick.
“E depois, quando voltar dessa experiência de imersão, provavelmente estará numa posição na qual será capaz de gerir melhor essa competição“, acrescenta. “Isso nunca vai acabar, essa competição nunca vai acabar, você só fica melhor em dominá-la”.
Via BBC