Embora as formas faladas sejam distintas o suficiente para serem consideradas idiomas separados, a resposta depende, em parte, de como o conflito entre os dois países se resolverá.
Desde o início da guerra na Ucrânia, o número de pessoas que estudam ucraniano no Duolingo aumentou mais de 500%. A maioria dos que estão estudando ucraniano provavelmente não sabe que há uma controvérsia de longa data sobre essa forma específica de fala.
Um lado vê russos e ucranianos como “um só povo”, e o lado oposto, não. Os primeiros afirmam que o ucraniano é apenas um dialeto do russo, enquanto os outros argumentam que é uma língua separada. Quem está certo? Infelizmente, não há uma resposta clara. A diferença entre uma língua e um dialeto depende a quem você pergunta.
O ângulo linguístico
Muitos linguistas baseiam a determinação de língua ou dialeto no fato de as formas de fala serem mutuamente compreensíveis. Em termos simples, se duas pessoas estão falando dialetos diferentes da mesma língua, elas provavelmente podem se entender. No entanto, se duas pessoas estiverem falando idiomas separados, provavelmente não conseguirão se entender.
Por essa definição, o tcheco e o eslovaco podem ser vistos como dialetos da mesma língua. O mesmo vale para indonésio e malaio.
Algumas formas faladas parecem bem diferentes quando a caneta é colocada no papel. Por exemplo, o sérvio é escrito com uma variação do alfabeto cirílico, como o russo, enquanto o croata usa uma forma do alfabeto latino, como o inglês. No entanto, muitos linguistas considerariam o sérvio e o croata como dialetos da mesma língua, caso levem em conta a compreensão das formas faladas.
Os humanos falam há muito tempo, mas só escrevemos há alguns milênios. Além disso, das cerca de 7 mil línguas vivas conhecidas, apenas cerca de 4 mil têm um sistema de escrita.
A política diz algo diferente
Para cientistas políticos, a diferença entre uma língua e um dialeto não se baseia na compreensão mútua, mas sim na política. Por exemplo, hindu e urdu são línguas separadas porque os governos da Índia e do Paquistão dizem que são, embora as formas coloquialmente faladas das duas variedades sejam muito semelhantes.
Max Weinreich, um estudioso de iídiche, popularizou a ideia de que “uma língua é um dialeto com um exército e uma marinha”. Em outras palavras, um governo pode promover a visão de que um dialeto é uma língua separada, mesmo que não seja em termos linguísticos.
A Moldávia, por exemplo, argumenta que o moldavo é uma língua separada, apesar de ser quase idêntica ao romeno. Embora a Romênia tenha ficado chateada com essa repaginação linguística, de acordo com o artigo 13 da Constituição da Moldávia, a língua oficial do país é o moldavo, e não o romeno. Assim, as duas são linguagens separadas – pelo menos politicamente.
A concessão de classificação oficial a uma determinada forma falada não apenas incentiva seu uso no governo, incluindo os tribunais, mas também geralmente significa que uma forma falada será ensinada nas escolas, garantindo assim que as gerações futuras compartilhem um idioma comum – mesmo que tenha sido inventado para fins nacionalistas.
Assim como um dialeto com exército e marinha pode ser considerado sua própria língua, uma língua com exército e marinha pode chamar outras línguas de meros dialetos. Por exemplo, o idioma oficial da República Popular da China é o chinês padrão, que muitas vezes é abreviado para simplesmente “chinês” e às vezes – contenciosamente – chamado de mandarim. No entanto, esta não é a única forma de discurso ouvida no país.
O cantonês é amplamente falado em Hong Kong e nos arredores, mas muitas vezes é tratado como um dialeto de “chinês”. No entanto, o mandarim falado e o cantonês não são mutuamente compreensíveis. Assim, em termos linguísticos, essas duas formas de fala não seriam consideradas dialetos de uma única língua, e sim línguas separadas.
A fim de fortalecer o poder do governo central contra o sentimento separatista, o governo chinês promove há muito tempo uma agenda de unificação linguística. A intenção é criar uma forma comum de comunicação para o país, mas também minimizar as diferenças linguísticas e culturais que existem entre as diferentes comunidades. Para difundir a adoção do chinês padrão, conforme definido pelo governo, profissionais de televisão e rádio estão sujeitos a requisitos rígidos e podem até ser multados por usar pronúncia incorreta.
Em toda a China, as formas locais de fala estão sendo eliminadas como meios de instrução nas escolas em favor do mandarim. Muitas dessas formas estão em declínio e algumas correm o risco de ser extintas. Tais esforços não significam necessariamente que esses tipos de fala não sejam “linguagens reais” no sentido linguístico.
Mas politicamente, a diferença entre uma língua e um dialeto é o que a China diz que é. Isso se reflete inclusive ao nível internacional, pois muitas organizações, como as Nações Unidas, reconhecem o “chinês” como sendo a forma de fala padronizada e promovida pelo governo chinês.
Resolvendo o conflito
E então, o ucraniano é um dialeto da Rússia ou um idioma separado? Linguisticamente, o ucraniano e o russo são tão diferentes quanto o francês e o português. Embora o francês e o português descendam do latim, agora divergiram o suficiente para dificultar o entendimento mútuo. Da mesma forma, embora o ucraniano e o russo compartilhem um ancestral comum, suas formas faladas atuais agora são diferentes o suficiente para haver um forte argumento linguístico para serem considerados idiomas separados.
Politicamente, no entanto, se o ucraniano é um dialeto ou uma língua dependerá, em parte, de como a guerra terminará. Se a Ucrânia continuar a ser um país independente que considera o ucraniano uma língua separada – é uma língua separada.
Se, no entanto, a Rússia acabar controlando toda a Ucrânia, terminando assim o processo que começou em 2014 com a anexação da Crimeia, então a Rússia poderia promover a visão de que o ucraniano é apenas um mero dialeto do russo, para reforçar a condição diminuído da Ucrânia como uma parte da Rússia.
Em suma, não apenas a integridade territorial da Ucrânia está em risco, mas também a independência de uma comunidade cultural única e distinta.
Via Revista Galileu – artigo originalmente publicado no site The Conversation (em inglês)